Mês passado, aqui neste espaço, falei sobre o papel de histórias e canções na formação dos pequenos e sobre como os gestos de contar e cantar fazem parte do ato de educar. É dessa forma que Milton Nascimento sempre aparece aqui em casa, em minhas pobres interpretações de “Ponta de Areia” ou “Saudades dos aviões da Panair”. E nessa última, de Milton e Fernando Brandt, há um verso em especial que me toca: “o medo em minha vida nasceu muito depois”.
Acredito que outros pais ou outras mães sintam o mesmo: apenas descobriram, de fato, o que é sentir medo, após o nascimento de seus filhos. Antes, nada era capaz de despertar a tamanha angústia de hoje ao imaginar que algo possa nos acontecer e que, por isso, não estaremos presentes quando eles precisarem de nós. Antes, nada era tão aterrorizador quanto imaginar que algo possa acontecer com eles.
Talvez por isso, por esse medo, o assunto que quero abordar aqui seja tão delicado e tão pouco discutido. Talvez por isso, ele só apareça como algo distante, algo que só acontece em famílias que imaginamos muito diferentes da nossa, uma coisa que só aparece nos jornais, para dizer que há monstros lá fora. Não discutimos as estruturas culturais e sociais que permitem que essa violência aconteça, pois, para nós, é insuportável imaginar que nossas crianças possam ser vítimas de abuso ou exploração sexual.
Precisamos falar sobre isso
Há alguns dias, repercutiu na imprensa local a prisão de um conhecido músico da cidade, acusado de estuprar uma menina de 11 anos, filha de um amigo de infância. A criança havia ido passar o fim de semana na casa do músico e o estupro ocorreu no quarto da filha dele, por duas noites seguidas. O caso veio à tona porque a menina, quando voltou para casa, contou o que acontecera para a mãe e teve apoio da família. Houve quem defendesse o músico, em comentários e redes sociais, por conta de seu sobrenome. E houve quem o defendesse alegando que a menina teria consentido ou que ela teria inventado tudo.
Essa história, para esta nossa conversa, é relevante, pois traz uma série de elementos comuns a outros casos do mesmo tipo de violência. A partir dela, podemos desmitificar algumas questões, a começar pela ideia de que é algo que acontece quando a vítima se coloca em alguma situação de risco. Pelo contrário, a menina estava em local familiar e sob os cuidados de um adulto próximo a ela. De acordo com organizações dedicadas ao enfrentamento desse tipo de violação dos direitos de crianças e adolescentes, é nesse ambiente que acontece a maioria absoluta dos casos de abuso sexual.
Já a ideia de consentimento é juridicamente insustentável, uma vez que a legislação brasileira considera que sexo ou qualquer ato libidinoso envolvendo menor de 14 anos é estupro de vulnerável. É sempre crime, sem qualquer exceção. Um parênteses: a noção de idade de consentimento explica por que é errado falar em prostituição infantil. A palavra “prostituição” traz a ideia de relação comercial consentida, o que não ocorre no caso de crianças e adolescentes, motivo pelo qual o termo adequado é exploração sexual.
Outro elemento comum, as alegações de invenção ou mal entendido, são formas cruéis de tentar calar a vítima. E o silêncio é a principal razão para que esse tipo de violência se perpetue. É preciso saber ouvir a criança ou o adolescente, que muito provavelmente estará confuso por ter sido vítima de alguém em quem confiava e que, talvez, representasse uma figura de autoridade. É importante ensinar à criança como identificar que determinada forma de interação não é aceitável e demonstrar que ela tem espaço para falar. É importante que a criança saiba que será ouvida, sem julgamentos, quando sentir que há algo de errado.
Não desvie o olhar
O caso que aqui discutimos foi, coincidentemente, noticiado no dia anterior ao Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o 18 de maio. A data foi escolhida, no ano 2000, para que não nos esqueçamos do Caso Araceli, ocorrido em 1973, quando uma menina de 8 anos de idade foi cruelmente assassinada, após ter sido violentada, em Vitória, no Espírito Santo. Três homens de famílias tradicionais e influentes da cidade foram acusados e, posteriormente, absolvidos.
O 18 de maio é a data escolhida para destacar o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes e para mobilizar a sociedade a participar da luta pela garantia do direito de meninas e meninos a terem sua liberdade sexual respeitada – liberdade no sentido de não ser forçado a agir em desacordo com seu estágio de desenvolvimento. Como colocam os defensores dos direitos de crianças e adolescentes, é preciso formar uma consciência nacional para não desviar o olhar, denunciar e romper com esse ciclo de violência e proteger meninas, meninos e adolescentes brasileiros.
Como denunciar
Disque 100 – Em qualquer telefone, disque 100 para denunciar, anonimamente, violência sexual ou qualquer tipo de violação de direitos humanos. Também é possível fazer a denúncia pelo site http://www.disque100.gov.br/.
Disque Denúncia 181 – Serviço de coleta anônima de denúncias. Em São Paulo, é gerido pelo Instituto São Paulo Contra a Violência em parceria com a Secretaria da Segurança Pública. Pela internet: http://www.webdenuncia.org.br/.
Conselhos tutelares – Órgãos encarregados de zelar pelos direitos humanos de crianças e adolescentes. Em Jundiaí, temos três unidades. Confira qual delas atende seu bairro e qual o telefone de contato aqui (https://jundiai.sp.gov.br/assistencia-e-desenvolvimento-social/conselhos-tutelares/).